É possível identificar uma pessoa somente através de uma imagem de RM de crânio? A reconstrução facial 3D e o fácil uso de softwares de reconhecimento facial nos fazem retomar a importância de prezarmos pela confidencialidade dos dados de participantes de pesquisa clínica.
A confidencialidade dos dados de participantes de pesquisas clínicas vem sendo debatida com o avanço das boas práticas clínicas (BPC ou GCP do Inglês: Good Clinical Practice). Estes dados, por lei, devem ser protegidos de forma a preservar a identidade dos participantes seguindo princípios éticos em relação aos mesmos dentro de estudos clínicos.
Nos exames utilizando imagens médicas (caso da nossa querida RM!) existe a possibilidade de identificação dos pacientes nas aquisições das imagens. Como sabemos, dados como o nome do paciente, idade, gênero, parâmetros hematológicos entre outros podem ser inseridos durante a aquisição das imagens em situações normais de diagnóstico de forma a ajudar o profissional a compreender a clínica do indivíduo como um todo além de promover a rastreabilidade do exame dentro de um sistema. Estes dados são o que chamamos de "metadados" (ou dados que estão contidos em outros dados). São informações extras que permitem a identificação do paciente que vão além das informações obtidas através das imagens de ressonância em si. Normalmente, quando utilizamos as imagens para fins de pesquisa, os metadados são retirados (desidentificados ou anonimizados) antes de serem analisados ou compartilhados para serem usados em estudos clínicos.
Entretanto, quando um paciente se submete a uma RM de crânio, por exemplo, a imagem da face do mesmo permanece passível de reconstrução.
Assim, em uma carta ao editor recentemente publicada no The New England Journal of Medicine, pesquisadores da Mayo Clinic Alzheimer’s Disease Research Center (Estados Unidos) consideraram a hipótese de um participante de um estudo clínico ter seus dados desidentificados em uma MRI de crânio para que se possa (mediante a aceitação do paciente) usar as imagens para fins de pesquisa e que alguém, por alguma circunstância, queira identificar o participante.
Seria possível identificar o paciente mesmo assim? Como?
Sim, é possível pelo simples fato de existir a possibilidade de efetuarmos a reconstrução da imagem 3D da face do paciente a partir de RMs de crânio. Neste caso, por mais que metadados sejam anonimizados ou desidentificados, existe ainda esta espécie de “brécha” para a identificação do rosto dos participantes de pesquisa.
Existindo tal possibilidade, os pesquisadores da Mayo Clinic fizeram a seguinte pergunta: será que um software de reconhecimento facial consegue comparar as imagens de face reconstruídas a partir de RMs de crânio com faces obtidas em redes sociais ou outras fontes públicas e identificá-las com precisão? Tal identificação resultaria em uma grave infração à privacidade de participantes de estudos clínicos. Isto levaria não só a identificação mas a possível publicação de dados em relação ao diagnóstico, parâmetros cognitivos, biomarcadores, dados genéticos e a própria participação destas pessoas em estudos clínicos específicos. Abaixo, vemos a linha de raciocínio seguida pelos pesquisadores:
Figura 1. Possibilidade da reconstrução facial a partir de RMs de crânio e a possível identificação dos rostos através do pareamento da reconstrução 3D com imagens de fotos públicas (redes sociais, por exemplo) utilizando um software de reconhecimento facial.
Para determinar se e como um software de reconhecimento de face poderia identificar pessoas usando imagens de reconstrução facial contidas nas aquisições por RM, foram recrutados 84 participantes submetidos a exames de RM de crânio (FLAIR) e seus rostos foram fotografados em 5 ângulos diferentes. Após a utilização de um sistema automatizado, um modelo computacional 3D dos rostos dos participantes foi gerado a partir das imagens de RM de crânio dos pacientes. Abaixo, fotos retiradas e os resultados de alguns exemplos desta reconstrução:
Figura 2. Fotos tiradas dos pacientes comparadas às reconstruções 3D de face obtidas por RM de crânio.
Como podemos ver, foi possível reconstruir com uma boa qualidade os rostos dos participantes. A partir desta reconstrução, se testou um software de reconhecimento de face disponível publicamente da Microsoft (Microsoft Azure) na tentativa de parear as imagens de reconstrução facial 3D com as fotos reais dos participantes através de suas semelhanças. Para cada foto, o software retornou 50 possíveis combinações de semelhança.
Como resultado, o software de reconhecimento facial foi capaz de reconhecer acertadamente as fotos de 70 dos 84 participantes (83% dos rostos formados a partir da reconstrução facial). Em estudos anteriores utilizando-se humanos como avaliadores de semelhança entre fotos reais x reconstruções faciais por RM a taxa de acerto não foi tão grande como a encontrada usando o software de reconhecimento facial.
Este achado sugere que o reconhecimento de face obtido através de softwares já disponíveis no mercado pode ser uma possível forma de identificar participantes de estudos clínicos a partir da reconstrução de suas faces em RM.
Desta forma, os métodos atuais para a retirada apenas de metadados de exames de ressonância magnética de crânio podem não prevenir a reidentificação dos participantes de pesquisa. Na medida em que ferramentas capazes de retirar, borrar ou bloquear a reconstrução de faces em imagens médicas são raramente usadas (muitas vezes por prejudicar a avaliação do volume de massa cinzenta e espessura cortical), se torna necessária a execução de mais estudos de forma a desenvolver melhores formas de anonimização em imagens de face reconstruídas por ressonância de crânio.
Para ler mais detalhes sobre o trabalho e o método utilizado, acesse:
Schwarz CG, Kremers WK, Therneau TM, Sharp RR, Gunter JL, Vemuri P, Arani A, Spychalla AJ, Kantarci K, Knopman DS, Petersen RC, Jack CR Jr. Identification of Anonymous MRI Research Participants with Face-Recognition Software. N Engl J Med. 2019 Oct 24;381(17):1684-1686. doi: 10.1056/NEJMc1908881. PMID: 31644852; PMCID: PMC7091256.
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